
Esta semana, será julgado em segunda instância o processo movido contra a ex-ministra Eleonora Menicucci pelo ator pornô Alexandre Frota. A ação, como é público, foi motivada pela denúncia feita pela ministra de que o acusador praticara apologia ao estupro em uma entrevista num programa de TV. O vídeo da entrevista está no ar, e o tal Frota confessa claramente que fez sexo com uma mulher desacordada, que teria desmaiado justamente em virtude da violência pela qual teria sido submetida por ele mesmo. Se isto não se trata de uma confissão de violência contra a mulher, eu não saberia mais dizer o que seria violência contra a mulher.
Depois, o ator se desmentiu, e disse que tudo não passou de encenação. Ora, pouco importa. Primeiro, porque a declaração foi prestada em um “talk show”, e não em uma novela ou outra obra ficcional. Mas o mais importante: de fato, o relato do Frota é uma clara demonstração de desrespeito contra a mulher. E é esse desrespeito que, banalizado, alimenta há séculos o machismo e o feminicídio quotidianos, que fazem do Brasil um dos países campeões nesta triste matéria.
Como construir uma sociedade democrática com tanta desigualdade, com tanta intolerância e com tanta violência, como as que já são praticamente naturalizadas no Brasil? Aliás, o Frota – junto com o Lobão, outro “walking dead” dos anos 1980 -, também tem se mostrado como um dos generais deste novo exército de intolerantes que tomam conta do país. Como pensar em um artista que vai ao MEC defender uma escola “sem partido“ – e sem pensamento crítico -, e que invade museus, com celular em punho, para “denunciar” a arte, vivenciada em expressão pura e radical? Como pensar em arte sem liberdade de critica – e, pior, com patrulha? Seria possível uma democracia sem livre expressão da arte? Penso que não, e que estes movimentos de intolerância que ameaçam a liberdade e o Estado de Direito no Brasil – a duras penas construídos – são parte de um processo mais amplo de “desdemocratização”, ou de “transição à ditadura” – para usar a apropriada expressão de Luís Felipe Miguel – que ora infelizmente vivenciamos no país.
E aqui a questão se torna mais dramática e cruel. A processada – e condenada por uma juíza, em primeira instância – é uma mulher que muito jovem fez uma opção muito clara e radical: dedicar sua vida à defesa das liberdades e ao combate à violência contra a mulher. Uma vida dedicada à construção da democracia, portanto, pois uma sociedade verdadeiramente democrática (que nós, que não abandonamos a capacidade de sonhar nem de criticar o mal-estabelecido, chamamos de “socialismo democrático“) não tolera a falta de liberdade, nem nenhum tipo de violência – nem tampouco tolera os intolerantes, como ensina o mestre Bobbio.
Daqui da Paraíba eu posso falar dessa opção radical – e generosa – de Eleonora Menicucci. Saída da prisão, para onde foi condenada por um tribunal de arbítrio na ditadura dos generais – e onde nasceu sua filha Maria -, Eleonora procurou seu conterrâneo das Minas Gerais, Frei Betto. Queria ir para uma cidade nova, onde pudesse viver sua liberdade com algum anonimato, que não seria possível em BH. Na prisão, é ela mesma quem conta, Eleonora havia reforçado sua convicção feminista, sedenta que estava por uma liberdade incondicional para si e seu país. E o amigo Betto aconselhou-a a vir morar em João Pessoa. E não por acaso: aqui era Arcebispo Dom José Maria Pires, o “Dom Pelé”, o bispo negro da ”Missa dos Quilombos” (com Dom Hélder, Dom Pedro Casaldaliga, Milton Nascimento e Pedro Tierra, outro ex-preso político), o bispo corajoso que denunciava os generais e os latifundiários. E Eleonora veio para João Pessoa, na metade dos anos 1970, assessorar Dom José, junto a quem também estava outro ex-preso político, o advogado Wanderley Caixe. Na Arquidiocese da Paraíba, liderados por Dom José, Eleonora, Caixe e tantos outros bons fundaram um Centro de Defesa dos Direitos Humanos, lutando pelos mais humildes.
Não tardou para Eleonora entrar na UFPB como professora de sociologia – e logo como militante sindical. Em muito breve, fundou, em 1978, a secção de João Pessoa do Comitê Brasileiro pela Anistia – que funcionava nos salões da Igreja do Miramar -, da qual participou da primeira diretoria. Quem se der ao trabalho de consultar os Arquivos do SNI sobre o período – digitalizados e tornados públicos no Arquivo Nacional pelos governos de Lula e Dilma – vai ver lá: Eleonora era constantemente patrulhada pelos arapongas da ditadura. Bela sina, esta de Eleonora: desde sempre, ser perseguida pelos inimigos das liberdades. Mas Eleonora não parou aí, e fundou os primeiros grupos feministas da cidade. Veio 1982 e João Pessoa foi abalada por um triste episódio de feminicídio – um marido violento que assassinou sua mulher, uma poetisa com nome de flor, Violeta Formiga -, e lá estava Eleonora encabeçando, com tantas outras e outros, a campanha pública pela condenação do assassino. O slogan da campanha eu – criança na época – lembro bem: “quem ama não mata”.
Mas João Pessoa era pequena para Eleonora, que fez da sua vida sua luta. Eleonora foi para São Paulo, para a Itália, para Brasilia, articulando pesquisa acadêmica e militância feminista. Virou ministra e, mais do que ministra, virou um símbolo de luta pelos direitos humanos, e pelos direitos das mulheres em particular. E virou um exemplo de dignidade – conquistada tempranamente -, ao ficar ao lado de Dilma até os momentos finais do golpe de 2016, ostentando sua expressão firme e seu traje vermelho.
Este processo ao qual Eleonora agora é submetida não surge à toa. É apenas mais uma expressão da tal “desdemocratização” que vitima o país e que mostra que nós, que lutamos pela democracia e contra todo tipo de desigualdade e dominação, não podemos nunca baixar a guarda. Filhos de uma transição à democracia feita pelo alto, por um pacto de elites, acreditávamos todos que a transformação do Brasil em uma sociedade de direitos em expansão era um caminho sem volta. Tola ilusão! Abraçamos a democracia, e esquecemos a luta de classes. E no Brasil a dominação de classes sempre foi autoritária, violenta, anti-povo e misógina.
Uma eventual condenação de Eleonora Menicucci será uma condenação da luta por uma sociedade democrática e de direitos, contra as desigualdades e a dominação.
Querida Eleonora, daqui de João Pessoa eu te abraço, abraço seus filhos Maria e Gustavo e abraço seus netos. A sua luta é nossa luta.
Porque, neste momento, somos todas (e todos) Eleonora Menicucci
Rodrigo Freire – professor de ciência politica da UFPB