
Em luto, porém, nutrindo esperança por saber que mortes de corpos negros ainda nos mobilizavam, com um fio de esperança por encontrar mais alguém que se importasse, por ver outros dos meus vivos e com voz. Entendam, não era falta de consciência dos dados de desigualdade, de encarceramento e homicídio, feminicídio que, infelizmente, também demarcam a experiência negra no Brasil.
Essa contagem diária de ausentes, entretanto e sobretudo, o exercício de teorizar sobre essa realidade amarga me tiravam as esperanças de um futuro possível. Preferia falar sobre as possibilidades de educação, trabalho, emprego, vida e suas potencialidades. Preferia falar sobre nossa resistência e cantar nossos cantos de resistências.
Não é trivial explicar para quem nos mata o porquê e como morremos, porque choramos e nos indignamos, como me disse Felipe Freitas [1]. É a esse esforço cognitivo que somos submetidos quando somos chamados a público a explicar e aprofundar a realidade do nosso extermínio exposta em dados: recontar nossos mortos e transformar a dor em palavra capaz de apreensão pelo outro, geralmente, insensível a nossa dor. A elevação de consciência é um caminho sem volta, entretanto. Não era mais possível aprofundar o debate dos significados da experiência da negritude no Brasil sem tratar também dessa dimensão das mais duras: o nosso extermínio.
Quando dizemos do genocídio do povo negro, falamos de uma tripla morte. Em primeiro lugar, falamos da nossa morte física resultante da violência obstétrica, da negligência do acesso à saúde e à justiça, dos altos índices de mortalidade materna por causas evitáveis, da violência contra a mulher, do homicídio, da tortura etc. Falamos também da violência simbólica na nossa invisibilidade ou estereotipação na mídia, nos comerciais, nas novelas, nos locais de mando e decisão, no cinema, no teatro, enquanto professores universitários e tantos outros.
Há ainda uma terceira dimensão dessa morte, a das nossas consciências, da nossa memória, do legado deixado pelos nossos. Não raro nos deparamos na mídia, nas comunidades, nas redes sociais com notícias caluniosas sobre jovens, homens e mulheres negras assassinados. São essas as mortes as quais resistimos: a morte em vida, a morte físicae a morte espiritual do legado de nossos mais jovens e mais velhos. Todas são mortes “matadas.” É disso que falamos quando gritamos genocida não somente do Estado, mas da sociedade brasileira.
Aproveito aqui para falar de Marielle Franco, vereadora do Rio de Janeiro, negra e mulher. Marielle foi morta dia 14 de março, junto com Anderson Gomes. Uma outra passageira, assessora da vereadora, foi atingida por estilhaços. Não bastou a essa sociedade ver a vida dessa mulher negra, vereadora, militante de direitos humanos assassinada. Era preciso destruir seu legado, silenciar os ecos de sua voz. Uma enxurrada de calúnias inundou as redes sociais tentando justificar o injustificável: o homicídio de Marielle.
As fake news, as calúnias e difamações que têm circulado são uma das fáceis cruéis do racismo: o esforço constante de diminuir a importância da trajetória de negras e negros no Brasil, de negar a universalidade de das lições de resistência que ela deixa para sociedade brasileira.[2]
Desde a morte da vereadora, não nos foi possível viver o luto e digerir o significado da morte de uma mulher, negra, pobre, favelada, bissexual, defensora de direitos, acadêmica. Marielle era também uma esperança política para parte de um Rio de Janeiro tão cansado de lideranças que destoam das pautas prioritárias para os movimentos sociais.
Não nos foi possível ir às ruas chorar uma das nossas, um dos nossos e reconstruir nossas esperanças com àqueles que também se indignaram. Foi preciso realizar uma disputa pública sobre o significado da morte de sua morte e sobre a sua trajetória. Sua assessoria, sua família, as pessoas que a amavam e admiravam precisaram em meio ao luto se organizar para a preservação da sua memória.
A desumanização provocada pelo racismo permite que parte da sociedade brasileira se sinta no direito de nos negar até mesmo o que há de mais comum entre nós: o luto e as reflexões sobre o significado da vida e da morte.
Carta Capital